Vivienne Ming é uma neurocientista teórica. Em sua carreira, tem um vasto histórico com Inteligência Artificial. Ela também é mãe de um menino autista e explica, neste artigo, o motivo de estar transformando seu filho em um “ciborgue”. Por que aparelharar pessoas com equipamentos tecnológicos de ponta para melhorar suas habilidades?
Imagine se todo mundo falasse um idioma que você não entende. As pessoas têm falado ao seu redor desde o dia em que você nasceu, mas enquanto todos os atendem imediatamente, para você isso não significa nada. Outros ficam frustrados com você. Amizades e empregos são difíceis. Apenas ser “normal” se torna uma batalha.
Para muitos com autismo, esta é a linguagem da emoção. A quem está no espectro, a fluência nas expressões faciais não é de graça, como nos “neurotípicos”. Já para eles, a leitura de expressões faciais parece um superpoder.
Então, quando meu filho foi diagnosticado, eu reagi não apenas como mãe. Reagi como um cientista maluca e construí um superpoder para ele.
Não é a primeira vez que eu fiz o papel de cientista louca com a biologia do meu filho. Quando ele foi diagnosticado com diabetes tipo 1, cortei a bomba de insulina e construí uma IA que aprendeu a associar a insulina às emoções e às atividades. Também explorei neurotecnologias para aumentar a visão, a audição, a memória, a criatividade e as emoções humanas. As mães obcecadas pelo sucesso dos filhos podem ficar neuróticas com a escolha das escolas preparatórias e atividades extracurriculares “certas” para o filho, mas eu digo por que deixar o intelecto deles ao acaso?
Eu escolhi transformar meu filho em um cyborg e alterar a definição do que significa ser humano. Mas será que os superpoderes criados para o meu filho o tornam mais ou menos humano?
Como a CIA me ensinou a sorrir
A vida me deu um menino incrível e exaustivo. Também me deu ferramentas únicas para ajudá-lo a superar seus desafios.
O primeiro veio na forma de um esquema louco da CIA para criar uma IA com a finalidade de capturar mentirosos. Anos atrás, no meu primeiro projeto de aprendizado de máquina como estudante de graduação, ajudei a criar um sistema de detecção de mentiras em tempo real que pudesse funcionar com vídeos. A IA que desenvolvemos aprendeu a reconhecer as expressões faciais das pessoas diante das câmeras e inferir suas emoções. Ela explorou todos os quadros do vídeo, aprendendo os movimentos dos músculos faciais que indicavam nojo (rugas no nariz + levantamento do lábio superior) ou raiva (sobrancelhas para baixo e juntas + olhos brilhando + lábios estreitos). Ela até aprendeu a distinguir sorrisos “falsos” de “verdadeiros”.
Antes deste projeto, presumi que passaria uma longa carreira em neurociência colocando eletrodos em cérebros. Mas assistir nossos algoritmos aprenderem uma tarefa tão fundamentalmente humana me levou a estudar como a inteligência natural e a artificial podem trabalhar em conjunto.
Um pouco mais da minha história
Avançando rapidamente na década seguinte de minha carreira acadêmica (codificação neural e cyborgs) e minhas primeiras startups (IA para educação e emprego), e eu construí uma reputação de doida que procura “maximizar o potencial humano”. Fui convidada a explorar ideias adicionais ao Google Glass – espécie de smartphone em formato de óculos – que era então usado para publicações em mídias sociais e vídeos de família.
Para uma mulher que queria construir ciborgues, havia muito potencial. Juntamente com seu poder de computação, o Glass tinha uma câmera ao vivo, uma tela heads-up e uma combinação de controles de voz e movimento da cabeça. Partindo desse projeto antigo da CIA e dos meus anos de pesquisa em aprendizado de máquina, comecei a construir sistemas de reconhecimento de rosto e expressão para o Glass.
Usando esses óculos de realidade aumentada, eu conseguia ler o rosto das pessoas – e muitas outras coisas terríveis. Imaginei usá-los para escanear uma sala, lendo expressões e sinalizando sorrisos falsos. Vi um futuro em que poderíamos acessar as pontuações de crédito ou abrir contas no Facebook ou Grindr. A cena poderia se desenrolar como um episódio de Black Mirror, com o Glass realizando minhas ações para explorar as vulnerabilidades emocionais dos outros. Porém, eu não estava interessada nesses aplicativos questionáveis.
“Eu só queria dar a crianças como o meu filho uma visão melhor das pessoas ao seu redor”
Em 2013, construí um sistema de prova de conceito chamada SuperGlass. Com base na pesquisa de um dos meus laboratórios acadêmicos, nosso sistema podia reconhecer a expressão de um rosto e escrever a emoção na pequena tela do Glass, permitindo que um indivíduo com autismo percebesse com mais facilidade se a pessoa à sua frente estava feliz, triste, zangada ou qualquer outra coisa. Simplesmente usar o Glass enquanto continuava as interações sociais cotidianas com outras pessoas permitiu que essas crianças aprendessem essa linguagem secreta das expressões faciais; é a versão em tempo real do treinamento de reconhecimento de emoções baseado em cartelas usando caricaturas em cartolina.
Porém, aprender que um sorriso significa felicidade em um pedaço de papel não ensina às crianças nada sobre porque as pessoas são felizes. Aprender o mesmo da interação social ajuda a construir a teoria da mente, outra linguagem secreta que falta no espectro do autismo.
Da evolução da pesquisa
Esta pesquisa continuou ao longo dos anos e superou muitas de suas limitações originais. Para muitas crianças, esses sistemas são mais que uma prótese – eles realmente avançaram no aprendizado dessa linguagem emocional secreta. Uma equipe de Stanford mostrou que pode melhorar o reconhecimento de expressão, mesmo quando a criança não o estiver usando. Nosso teste piloto descobriu, inclusive, que isso ajudou a promover a empatia.
Mas quanto mais eu experimentava, mais percebia que não queria “curar” o autismo do meu filho. Eu não queria perdê-lo, com suas maravilhosas diferenças. SuperGlass se tornou uma ferramenta para fazer uma tradução entre a experiência dele e a de nós, neurotípicos (um termo científico que significa que “seu cérebro é chato”). Ele não nivelou o jogo – apenas deu a ele um taco diferente para jogar.
Em uma época em que idiotas como eu estão construindo IAs para replicar tarefas humanas, seu valor para o mundo vai se transformar naquilo que o torna exclusivamente humano. Quanto mais diferente você é, mais valioso você se torna. Meu filho, portanto, não tem preço.
Dito isto, ainda havia uma pergunta que me incomodava: como eu poderia ter certeza de que estava ajudando essas crianças a navegar em um mundo às vezes alienígena, em vez de torná-las elas próprias extraterrestres? Tornando a vida melhor, ou apenas diferente?
Eu quero construir um mundo onde todos tenham superpoderes. E uma das maneiras de fazer isso é através de um campo conhecido como “neuroprosthetics”.
O que são Neuroprosthetics?
Neuroprosthetics são implantes que interagem diretamente com o seu cérebro. Eles já estão transformando a vida de muitas pessoas hoje: implantes cocleares para surdez, implantes de retina para cegos, neuroprotética motora para paralisados e estimulação cerebral profunda para uma variedade extraordinária de distúrbios, incluindo depressão e Parkinson.
Que outras vantagens eles podem trazer? Pesquisas mostram que podemos aumentar a criatividade e o controle emocional, além de influenciar a honestidade, o prazer e várias outras bases do eu. Minha área específica de pesquisa e desenvolvimento é a neuroprotética cognitiva: dispositivos que interagem diretamente com o cérebro para melhorar nossa memória, atenção, emoção e muito mais. Eu trabalhei em sistemas para prever episódios maníacos em pacientes bipolares. Grupos do MIT estão usando estímulos visuais ou auditivos rítmicos para reduzir os sintomas da doença de Alzheimer e outros para detectar convulsões e depressão.
Para muitos, a ideia de computadores presos em nossos cérebros evoca pesadelos de ficção científica como os Borg de Star Trek ou as máquinas humanas de Exterminador do Futuro. Enquanto meu próprio trabalho me leva em direções muito diferentes dessas histórias sombrias, é verdade que a neuroprosthetic já está começando a mudar a definição do que significa ser “humano”, e o resultado final dessas explorações da humanidade não é nada claro .
Meu primeiro projeto que me fez perceber o potencial da neuroprosthetic veio durante a faculdade em Carnegie Mellon. Meu orientador e eu desenvolvemos um algoritmo de aprendizado de máquina que aprendeu a escutar apenas “ouvindo” os sons que gravamos nos parques em Pittsburgh. Enquanto ouvia, o algoritmo aprendeu lentamente a escutar mais e mais, ajustando sutilmente milhões de cálculos internos para entender melhor seu mundo auditivo: o canto dos pássaros, o estalar de um galho, o t em “vietnamita”.
Um ouvido com Neuroprosthetics
Comecei a pensar se poderíamos construir um implante coclear baseado em IA: um ouvido de neuroprosthetic que restaurasse a audição para algumas formas de surdez. Nossas experiências mostraram que o algoritmo melhorou bastante a percepção da fala daqueles que usavam os implantes. Foi a primeira vez que construí algo que pode transformar a vida de alguém e eu sabia que era assim que passaria o resto da minha.
Mas também foi uma introdução à bagunçada complexidade do que torna uma vida “melhor”. Como ouvinte ingênua, nunca me ocorreu que alguém escolheria surdez. Mas aprendi que algumas partes da comunidade surda consideram o implante coclear um genocídio: um apagamento de suas línguas únicas, modo de vida e quem são.
Dilema
Assim como o autismo, sou frequentemente confrontada com o dilema de “curar” as pessoas de quem elas são, em vez de fornecer as ferramentas para compartilhar essas ricas diferenças com o mundo.
“Mas como podemos respeitar a humanidade de alguém e, ao mesmo tempo, dar a eles a opção de se tornarem mais parecidos com a maioria dos humanos?”
Afinal, às vezes o que significa ser humano é trágico. Um acidente de carro, queda ou até pobreza podem tirar o futuro de uma criança. Crianças com lesões cerebrais traumáticas (TCE) são frequentemente devastadas por seus ferimentos e sofrem desafios mentais e físicos a longo prazo.
Vídeos clínicos de crianças e adultos que lutam com lágrimas em tarefas que costumavam ser triviais são de partir o coração. Muitas pessoas com TCEs têm problemas com a extensão da memória de trabalho, que é aproximadamente o número de “pedaços” de informações que uma determinada pessoa pode se lembrar em um determinado momento; ela desempenha um papel considerável na educação, renda vitalícia e até saúde e longevidade.
Se sabemos que é possível fazer a diferença na vida dessas pessoas, não intervir não é tão moralmente perigoso quanto agir de fato?
Acho que sim. Na minha incubadora de ciências Socos Labs, uma das startups de neurotecnologia com a qual trabalhamos existe o objetivo de fazer a diferença na vida dessas crianças.
Em um experimento recente, os adultos aumentaram em 20% a duração de uma sequência de luzes e sons que eles podiam lembrar regularmente quando usavam um dispositivo da HUMM, em comparação com um estímulo falso. Em outro experimento recente, estímulos semelhantes melhoraram a memória de trabalho em idosos com declínio cognitivo.
Essa tecnologia pode ter um tremendo impacto em uma criança com um TBI e em outras pessoas que enfrentam problemas de memória de trabalho. Se um dispositivo não invasivo associado a terapia intensa pudesse melhorar suas chances de viver mais, vidas mais ricas, nenhuma sociedade deveria lhes negar essa oportunidade.
Mas há um outro lado. Os seres humanos neurotípicos podiam ver esses tipos de tecnologias ciborgues como dando a essas crianças vantagens injustas. Em um mundo que valoriza a diferença, humanos atípicos emparelhados com neuroprosthetics podem se tornar ainda mais poderosos do que os totalmente capazes. Se esse tipo de aumento puder destacá-los acima da multidão, em breve todos vão querer ser mais do que humanos.
Então, o que acontece quando começamos a dar esses superpoderes àqueles que já são “super-heróis”?
Cura normal
Seria voluntariamente ingênuo pensar que a pesquisa em neuroprosthetics termina com essas crianças ou aqueles que sofrem de demência. Se essas tecnologias puderem aumentar as funções de populações com capacidades diferentes, inevitavelmente um dia farão o mesmo com os neurotípicos.
Isso já está acontecendo sem as neuroprosthetics. Os estudantes nos EUA experimentam drogas como ritalina para melhorar seus resultados acadêmicos, mesmo que os benefícios possam ser uma ilusão. Esses medicamentos destinam-se a ajudar as pessoas com o foco no TDAH – a não estimularem seus colegas neurotípicos.
Embora possa ser uma pequena vantagem cognitiva – se houver alguma – ela está disponível apenas para crianças que já têm meios de adquirir os aprimoradores de desempenho. Já sabemos que fatores socioeconômicos dominam a admissão na universidade e o sucesso econômico a longo prazo, e sem as vantagens da riqueza, um pouco de inteligência aumentada ajuda muito menos.
É um bom exemplo de como a ciência e a tecnologia podem impulsionar ainda mais as desigualdades existentes. Em teoria, qualquer pessoa pode ter acesso a novas neurotecnologias. Mas, na realidade, é provável que os mais capazes de tirar proveito deles sejam os que menos precisam deles de fato. Simplesmente nascer na pobreza e no estresse tira as crianças de seu potencial cognitivo, enquanto ter pais ricos afeta drasticamente os resultados de uma criança, até mesmo a memória de trabalho.
Futuro ciborgue não tão distante
Dispositivos que melhoram o desempenho como esses estão em um futuro próximo. Você pode pensar neles como equalizadores de música. Você já pode ter um aplicativo no seu telefone que permita amplificar os graves e agudos das músicas que você ouve. Ajustar os controles deslizantes não altera fundamentalmente a música, mas enfatiza elementos diferentes, desde a clareza da voz em uma ópera até a grande queda de graves da dance music.
Agora imagine que o aplicativo te iguala. Em vez de ajustar a potência em diferentes frequências sonoras, deslizar um controlador neste aplicativo aumenta sua atenção ou diminui sua criatividade. Adicione um impulso à memória e você estará pronto para fazer um exame. Aperte o botão “Encontro” para estimular a emoção e o foco enquanto diminui a cognição (se houver uma comédia romântica ruim em seu futuro próximo, por que ser inteligente demais para apreciá-la?). Essas habilidades podem se tornar um doce presente para pais hiper-competitivos ou compradas em shoppings do Vale do Silício como um estímulo para melhorar o desempenho.
Onde traçamos o limite entre aumentar o potencial humano e erodir nossa humanidade? Qualquer sistema que eu construo segue minha regra mais importante de design de tecnologia: você não só deve ser melhor quando o está usando, mas também quando ele for desativado. A neuroprótese não deve substituir o que podemos fazer por nós mesmos; eles devem aumentar quem aspiramos ser.
“Não quero “curar” alguém. Especialmente meu filho. Quero que eles possam compartilhar esse eu com o mundo”
O conto de Kurt Vonnegut, Harrison Bergeron, imaginou um planeta em que as deficiências protéticas nos tornariam iguais, por remover vantagens. Embora um mundo padronizado possa parecer utópico, é igualmente possível que também percam nossas ricas diferenças por excesso de aumento. Se assumirmos que existe apenas um tipo de força, um tipo de beleza ou um tipo de inteligência, poderemos super normalizar a rica diferença da existência humana.
É sedutoramente fácil imaginar um mundo em que somos um pouco mais inteligentes ou um pouco mais criativos, em que nossos filhos tenham a mais recente vantagem do mercado. Mas o aumento também pode se tornar uma ferramenta para consolidar a desigualdade ainda mais firmemente.
Essas tecnologias podem e devem ser usadas para dar às pessoas com deficiência – as não-neurotípicas – a capacidade de existir e prosperar em um mundo neurotípico. Mas o que acontece quando todos têm uma superpotência no bolso de trás?
O que acontece quando todos nós quisermos nos tornar sobre-humanos?
Traduzido e adaptado de Quartz. Transhumanist parents are turning children into cyborgs. MING, Vivienne. Disponível em: <https://qz.com/1650393/transhumanist-parents-are-turning-their-children-into-cyborgs/?utm_source=The+Hack&utm_campaign=63b84769f6-THE_HACK_0145&utm_medium=email&utm_term=0_060634743e-63b84769f6-206979693>. Acesso em 4 nov. 2019.
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